quarta-feira, 24 de outubro de 2018

Jorge Luis Borges

1 Dois poemas ingleses
A Beatriz Bibiloni Webster de Bullrich

 I A inútil alvorada me encontra em uma esquina deserta; sobrevivi à noite. As noites são ondas orgulhosas: ondas de pesada crista azul-escura cheias de tons de espólios fundos, cheias de coisas improváveis e desejáveis. As noites têm o hábito de misteriosas dádivas e recusas, de coisas meio dadas, meio retidas, de alegrias com escuro hemisfério. As noites procedem assim, creia-me. A vaga, nessa noite, deixou-me os pedaços e as sobras avulsas de costume: uns amigos odiados para bater papo, música para sonhos e o fumegar de cinzas amargas. Coisas sem uso para meu coração faminto. A grande onda trouxe você. Palavras, quaisquer palavras, seu riso; e você, de uma tão preguiçosa e incessante beleza. Conversamos e se esqueceu das palavras. Os estilhaços da alvorada me encontram em uma rua deserta de minha cidade. Seu perfil que se desvia, os sons que compõem seu nome, a cadência de seu riso: ilustres brinquedos que você me deixou. Revolvo-os na alvorada, perco-os, encontro-os; revelo-os aos poucos cães erradios e às poucas estrelas erradias da alvorada. Sua preciosa vida obscura... Tenho de alcançá-la, de algum modo: guardo esses ilustres brinquedos que você me deixou, quero seu olhar oculto, seu sorriso real — esse sorriso solitário e zombeteiro que seu frio espelho conhece.

II Com que posso detê-la? Ofereço-lhe ruas decaídas, ocasos desesperados, a lua dos subúrbios maltrapilhos. Ofereço-lhe o amargor de um homem que por longo e longo tempo contemplou a lua solitária. Ofereço-lhe meus ancestrais, meus mortos, os espectros que os vivos honraram em mármore: o pai de meu pai morto na fronteira de Buenos Aires, duas balas nos pulmões, barbudo e morto, envolto por soldados em uma pele de vaca; o avô de minha mãe — apenas vinte e quatro anos — a comandar um ataque de trezentos homens no Peru, hoje espectros sobre cavalos extintos. Ofereço-lhe qualquer intuição que meus livros tenham, qualquer hombridade ou humor de minha vida. / Ofereço-lhe a lealdade de um homem que jamais foi leal. / Ofereço-lhe esse meu cerne que de algum modo preservei — o coração central que não lida com palavras, não comercia com sonhos e não foi tocado pelo tempo, pela alegria, pelas adversidades. Ofereço-lhe a lembrança de uma rosa amarela vista no ocaso, anos antes de você nascer. Ofereço-lhe explicações de si mesma, teorias de si mesma, novidades autênticas e surpreendentes acerca de si mesma. / Posso lhe dar minha solidão, minha treva, a fome de meu coração; estou tentando aliciá-la com incerteza, com perigo, com derrota. (Tradução de José Antônio Arantes.)

Nenhum comentário: